Reações transfusionais
Considerações iniciais
Em um ambiente hospitalar, a transfusão sanguínea é um procedimento rotineiro, seja para tratamentos de paciente com instabilidade hemodinâmica por perda aguda de sangue, para realização de procedimentos cirúrgicos ou para compensação de quadros crônicos. Como todo procedimento, esse também apresenta seus riscos, podendo levar a sérias complicações.
Classificação:
As reações transfusionais podem ser classificadas em:
– Agudas: aquelas que ocorrem em menos de 24 horas após a infusão;
– Tardias: as que ocorrem em mais de 24h após a infusão.
Quando suspeitar:
Deve-se suspeitar de reação transfusional sempre que houver evidência de alteração de sinais vitais, como hipertermia e hipotensão. Rash cutâneo, dor abdominal e desconforto respiratório devem ser cuidadosamente monitorizados.
Na suspeita de uma reação transfusional aguda, algumas medidas devem ser prontamente tomadas:
– Suspender imediatamente a transfusão;
– Manter acesso venoso e hidratar o paciente;
– Checar sinais vitais e estabilizar o paciente;
– Checar as etiquetas de identificação da bolsa;
– Notificar o banco de sangue;
– Colher amostras de sangue e urina para provas de hemólise, culturas e teste de compatibilidade;
– Registrar a ocorrência em prontuário.
Manifestações:
Agudas
– Reação febril não hemolítica: reação aguda imunomediada. Ocorre em decorrência da infusão de citocinas presentes na bolsa ou de respostas aos leucócitos presentes da bolsa. Também podem ser resultantes de reações alérgicas às proteínas exógenas presentes nesse produto. Em geral, é momentânea e não oferece maiores riscos para o paciente.
A suspeita ocorre quando há elevação da temperatura > 1 grau entre o início da transfusão e até 4h após o término e presença de taquicardia associada.
Conduta : Nesses casos, deve-se interromper a transfusão e observar atentamente o paciente. Indica-se o uso de medicações de alívio sintomático como Dipirona.
– Reações hemolíticas agudas: são quadros graves e súbitos que se manifestam poucos minutos após a administração de um concentrado de hemácias. Eventuais falhas como trocas de amostras, identificação equivocadas ou trocas de bolsas podem culminar esse evento potencialmente fatal.
Sinais como dor abdominal intensa, débito urinário escuro, hipotensão e sinais de má perfusão tecidual devem ser prontamente identificados.
Conduta : Deve-se interromper imediatamente a transfusão, oferecer expansão com SF para manter débito urinário adequado, fornecer analgesia e proceder com a estabilização do paciente. Lembrando que o banco de sangue deve ser notificado assim que possível e a bolsa de sangue e amostra do paciente encaminhadas para análise.
– Contaminação de hemocomponentes: bactérias criofílicas gram-negativas, como Yersinia, podem ser responsáveis pela contaminação de concentrados de hemácias.
Sinais como elevação da temperatura, taquicardia, hipotensão, tremores e desconforto respiratório podem sugerir o quadro.
Conduta : Deve-se interromper a transfusão, colher amostras do paciente para hemoculturas, iniciar antibioticoterapia empírica conforme necessidade e notificar o banco de sangue para que devidas analises sejam feitas.
– TRALI (lesão pulmonar aguda relacionada a transfusão): desconforto respiratório associado a infiltrado pulmonar intersticial que pode surgir até 6h após a transfusão. Acredita-se que sua fisiopatologia está relacionada à infusão de anticorpos anti-HLA presente na bolsa que levam à ativação de leucócitos e ao aumento da permeabilidade vascular pulmonar.
Caracteriza-se por um quadro de insuficiência respiratória e hipoxemia, sendo os diagnósticos diferenciais a síndrome de angústia respiratória aguda ou o edema agudo pulmonar. Conduta : Para o tratamento, indica-se suporte ventilatório.
A lesão pulmonar associada à transfusão, mais conhecida como TRALI (transfusion-related acute lung injury), é um evento adverso raro, porém potencialmente fatal, com incidência estimada em 0,04 a 1% dos pacientes transfundidos ou 1 a cada 5.000 transfusões. Pacientes na terapia intensiva e no pós-operatório estão particularmente sujeitos aos riscos de TRALI, devido à doença de base e à maior necessidade de transfusão.
A fisiopatologia da TRALI ocorre em dois estágios. No primeiro, há uma migração e ativação de leucócitos, em especial neutrófilos, para o parênquima pulmonar. Determinadas condições clínicas aumentam o risco desta migração. O segundo estágio ocorre na transfusão, quando anticorpos do doador ativam os neutrófilos, causando edema pulmonar inflamatório, o que também é mais comum em determinadas condições de transfusão.
Tabela 1. Fatores de risco para TRALI
HospedeiroDoador
SepsePlasma
Grande cirurgia, em especial cirurgia cardíaca com CEC
Aférese de plaquetas
Ventilação mecânica
Mulher
Alcoolismo e/ou hepatopatiaMultípara*
Transplante hepático
Estocagem prolongada**
Instabilidade hemodinâmica
Clinicamente, você irá reconhecer a TRALI pela ocorrência de desconforto respiratório associado à congestão pulmonar e hipoxemia importante em até 6 horas após uma transfusão. É importante que você exclua outras causas de edema pulmonar, como cardiopatias e SARA por sepse/infecção.
O quadro 1 mostra os critérios propostos para diagnóstico de TRALI.
Quadro 1. Critérios diagnósticos para TRALI
Ocorre até 6 horas após transfusão
Hipoxemia com P/F < 300 e/ou oximetria < 90% em ar ambiente
Infiltrado pulmonar bilateral na radiografia de tórax
Ausência de causa cardíaca para edema pulmonar
Ausência de lesão pulmonar aguda ou SARA antes da transfusão
Aqui cabem duas observações:
Possível TRALI: há lesão pulmonar aguda após transfusão, mas em um contexto associado a doenças que podem cursar com SARA, como aspiração, inalação de substâncias tóxicas, pneumonia, contusão pulmonar, afogamento, choque circulatório, sepse grave, politrauma, grande queimado, pancreatite aguda grave, overdose de drogas ou bypass cardiopulmonar (CEC) em cirurgia cardíaca.
TRALI tardia: quando há critérios, mas a transfusão ocorreu entre 6 e 72 horas antes da lesão pulmonar.
Além da hipoxemia e desconforto respiratório, outras manifestações clínicas comuns são:
Secreção pulmonar rosácea, como no edema agudo de pulmão (56%)
Febre (33%)
Hipotensão (32%)
Cianose (25%)
Não há tratamento específico para TRALI, sendo indicado o suporte com oxigênio complementar. Cerca de 70 a 90% dos pacientes vão precisar de ventilação mecânica, cuja mortalidade pode chegar a 40-50% dos casos!
Afaste causa cardiovascular. Na Tabela 2 mostramos o diagnóstico diferencial entre TRALI e TACO (transfusion associated circulatory overload, ou seja, edema de pulmão por hipervolemia).
Afaste causa infecciosa, pois é a única para a qual há necessidade de tratamento específico, os antimicrobianos.Dê suporte com oxigênio suplementar. As indicações de VNI/IOT/VM são mas mesmas das demais circunstâncias clínicas.
Tabela 2. Diagnóstico diferencial entre TRALI e edema agudo por hipervolemia (TACO)
TRALIFatorTACOPode haver febreTemperaturaNormalNormal ou BaixaPressão ArterialNormal a altaAusenteTurgência jugularPresenteNormalAusculta cardíacaB3NormalContratilidade VEReduzida ou Disf.Diastólica< 18 mmHgPressão Capilar Pulmonar> 18 mmHgNegativo ou neutroBalanço HídricoPositivoRuimResposta aos DiuréticosBoaPode haver leucopeniaLeucometriaNormal< 250 pg/mlBNP> 1200 pg/ml< 1000 pg/mlNT-proBNP> 4000 pg/ml
– TACO (sobrecarga associada à volume): sobrecarga volêmica associada a transfusão rápida de hemocomponentes em idosos e cardiopatas. A Sobrecarga Volêmica, Sobrecarga Circulatória pós-transfusional ou TACO do termo inglês Transfusion-associated circulatory overload vem se configurando como a terceira causa mais frequente de reações transfusionais notificadas ao sistema nacional de hemovigilância.
No contexto clínico, as dificuldades iniciam-se com a necessidade do diagnóstico diferencial com TRALI (Transfusion Related Acute Lung Injury) e com as diversas definições de TACO e de seus critérios de diagnóstico.
A International Society of Blood Transfusion – ISBT (2011), que tem por objetivo promover estudos sobre transfusões sanguíneas e elaborar padrões e normas de uso, define como TACO a reação adversa transfusional que se caracteriza por apresentar, até 6 horas após o término da transfusão, quatro de quaisquer dos seguintes critérios:
Vários autores e sistemas de hemovigilância têm seguido essa definição com pequenas variações: O CDC – Centers for Disease Control and Prevention – (2013) considera três ou mais dos mesmos sinais e sintomas, incorporando a evidência radiológica de edema pulmonar e discriminando os sintomas do quadro respiratório (dispneia, ortopneia e tosse).
O SHOT – Serious Hazards of Transfusion – (2012) define que TACO inclui quatro dos seguintes achados que ocorrem dentro de 6 horas da transfusão: angústia respiratória aguda, taquicardia, elevação da pressão arterial, surgimento ou piora de edema pulmonar, evidência de balanço hídrico positivo.
Outros sinais e sintomas da sobrecarga circulatória pós-transfusional incluem cefaleia, opressão no peito, agitação, cianose, estase jugular, pressão de pulso alargada, tosse, estertores e sinais de hipoperfusão cerebral. Ocorre queda da saturação de oxigênio com diminuição da PaO2, cardiomegalia e presença de edema alveolar e intersticial revelando um infiltrado pulmonar bilateral nos exames de imagem do tórax.
Outro destaque dado pela literatura à ocorrência de TACO é a gravidade da reação e a elevada morbimortalidade resultante desse tipo de complicação.
Para a notificação de uma suspeita de TACO - considerar a presença de pelo menos quatro dos seguintes achados durante a transfusão em até 6 horas após o seu término:
angústia respiratória aguda (ortopneia, dispneia, tosse)
taquicardia
elevação da pressão arterial
achados de imagem de edema pulmonar
evidência de balanço hídrico positivo.
aumento da pressão venosa central
Insuficiência ventricular esquerda
aumento de pepitídeo natriurérito tipo B (BNP)
Completar a notificação com dados que possam ajudar na confirmação diagnóstica tais como:
situações conhecidas de maior risco de TACO (extremos de idade como menores de 1 ano e maiores de 60 anos, baixo peso, anemia grave, doença renal, insuficiência cardíaca, hipoalbuminemia, sobrecarga hídrica, pré eclampsia, etc);
Situação clínica do receptor antes da transfusão (presença de um ou mais dos critérios clínicos descritos acima, antes da transfusão);
administração de fluidos endovenosos prévia ou concomitantemente à transfusão;
resultados de exames complementares que possam contribuir para a confirmação diagnóstica (ex: exame por imagem do tórax).
Sinais vitais pré e pós-transfusionais
Para prevenir a ocorrência de TACO:
Atentar para a indicação correta da transfusão de hemocomponentes, verificando se há alternativas terapêuticas;
Transfundir somente em locais onde o paciente possa ser bem observado e monitorado;
Obedecer todas as normas estabelecidas para a segurança transfusional;
Identificar previamente o paciente com maior risco de TACO e solicitar atenção especial durante a transfusão (observação frequente, sinais vitais, balanço hídrico rigoroso, comunicação imediata de qualquer anormalidade, cautela no tempo de infusão);
Evitar, sempre que possível, transportar paciente com a transfusão em curso;
Monitorar o balanço hídrico dos pacientes que recebem transfusão, com atenção especial para aqueles que apresentem situações de risco para TACO;
Monitorar de perto o tempo de infusão do hemocomponente que, para os pacientes em risco de TACO, deve ser o mais lento possível, dentro do limite máximo para o tipo de hemocomponente (a velocidade usual de infusão de produtos sanguíneos é de 2 a 2,5 ml/kg/hora. Entretanto, nos pacientes sob risco de desenvolverem sobrecarga volêmica, a infusão deve ser mais lenta e uma velocidade de 2 a 4 ml/minuto e 1ml/kg/hora são os parâmetros mais citados);
Considerar a solicitação de fracionamento da bolsa de hemocomponente quando a infusão mais lenta for insuficiente para prevenir a ocorrência de TACO em um paciente de risco;
Capacitar toda a equipe médica e de enfermagem quanto às normas de segurança do paciente e especificamente de segurança transfusional.
Conduta : Deve-se orientar uma transfusão lenta do hemoconcentrado e o tratamento é feito com diureticoterapia se possível e suporte ventilatório com ventilação não invasiva.
Tardias
– Reações hemolítica tardias: podem ocorrer dias ou até meses após o procedimento transfusional. Observa-se hemólise extravascular igG-medidas por aloimunização.
Conduta : Deve-se realizar pesquisa de anticorpos irregulares para seu diagnóstico.
– Doença do enxerto x hospedeiro transfusional: Trata-se de uma condição rara e potencialmente fatal. Pode manifestar-se a partir do segundo dia até 1 mês após a transfusão. Sua fisiopatologia consiste na enxertia de linfócitos T viáveis do doador no organismo do paciente imunossuprimido, gerando resposta imune. Observamos insuficiência hepática, hemorragia e infecções associadas ao quadro.
A irradiação de hemocomponentes previne a condição.
Bibliografia:
– Manual do residente de Clínica Médica/ Editor Milton de Arruda Martins. 2º edição. Baureri, SP: Manole, 2017.
– Medicina intensiva: abordagem prática/ Editores: Luciano César Pontes de Azevedo, Leandro Utino Taniguchi, José Paulo Ladeira, Bruno Adler Maccagnan Pinheiro. 4º edição. Barueri, SP: Manole, 2020.
em
https://portal.afya.com.br/terapia-intensiva/trali-fatores-de-risco-criterios-diagnosticos-e-abordagem-pratica