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Dor abdominal  na emergência pediátrica

Considerações iniciais

A dor abdominal aguda como queixa em Serviço de Emergência Pediátrica remete às causas mais comuns: gastrenterite e apendicite. Porém, não podem ser desconsideradas vários outros diagnósticos diferenciais. Dentre as causas clínicas, pode-se citar adenite mesentérica, crise falciforme, parasitose intestinal, pancreatite, cetoacidose diabética e infecção do trato urinário. Dentre as causas cirúrgicas de dor abdominal, destacam-se: divertículo de Meckel, hérnia encarcerada, úlcera péptica perfurada, bridas e invaginação intestinal entre outras.

Anamnese:
● Investigar hábito intestinal, antecedentes patológicos, cirurgias prévias do trato digestivo, uso de medicamentos como anti-inflamatórios,
● Pesquisar sinais de alerta: vômitos biliosos, abdome rígido, massa palpável, aumento inguino-escrotal, hematêmese e hematoquezia, dispneia, taquicardia e sinais de choque, dor localizada no abdome, história de trauma, queda do estado geral e hipoatividade, anorexia.
● Caracterizar a dor como contínua ou intermitente (cólica), fatores de melhora e piora
● Localização:
- epigástrica (p. ex., gastrite, pancreatite);
- dor em hipocôndrio direito (p. ex., hepatite, colecistite, colelitíase e colangite);
- dor em flancos: urolitíase, pode acompanhar disúria e hematúria.
- dor em quadrante inferior direito (p. ex., apendicite, colites, doença inflamatória intestinal).
- dor pélvica: em meninas sempre deve ser considerada possível patologia ovariana (cisto ovariano simples ou hemorrágico, torção e massa ovariana), doença inflamatória pélvica, gestação tópica ou ectópica. Questionar em adolescentes histórico menstrual e sexual, e realizar exame pélvico, quando adequado.
● Se vômito bilioso: obstrução intestinal (volvo e obstrução por bridas);
● Se vômito não bilioso: obstrução duodenal ou pilórica, intussuscepção, gastrite, pancreatite, gastroenterite, infecção do trato urinário (ITU), cetoacidose diabética (CAD).
● Se febre: gastroenterite, faringoamigdalite, pneumonia, ITU, peritonite (apendicite), translocação bacteriana (obstrução intestinal) e doenças inflamatórias pélvicas.
● Diarreia: gastrenterites; colite na apendicite; evacuações com sangue nas enterites bacterianas e divertículo de Meckel; evacuações com sangue e muco na intussuscepção e nas doenças inflamatórias intestinais.
● Alterações do hábito intestinal:
parada evacuatória (obstrução ou constipação intestinal);
escape fecal (constipação intestinal crônica);
distensão abdominal (obstrução distal);
diarreia (infecção, inflamação, intussuscepção).

Exame físico:
Pesquisar:
Ausculta: redução ou aumento de ruídos hidroaéreos. 

Inspeção: distensão abdominal, peristaltismo visível, escoriações e hematomas
Palpação: massas (p.ex., fezes, tumores), definir local mais tenso, assimetria ou defesa localizada de parede abdominal.
Percussão, sinal de Giordano, sinal de Blumberg, consegue “pular” da maca
Toque retal: casos de obstrução e constipação intestinal, ou na presença de sangramento digestivo baixo.
Inspeção região perianal (fissuras), lesões sacrais.
Avaliação perineal e genital, quando dor em baixo ventre.
Exame físico geral, sinais vitais, atenção para oroscopia (faringoamidalites), semiologia pulmonar cuidadosa (pneumonia é causa frequente de dor abdominal) e sinais de instabilidade cardiovascular.

 

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Exames complementares

De acordo com a suspeita clínica, solicitar os exames laboratoriais apropriados:
● Urina 1 – leucocitúria e/ou hematúria (se infecção do trato urinário, púrpura de Henoch-Schönlein, cetoacidose diabética, apendicite)
● Hemograma - leucocitose: infecções e realização de escores para apendicite
● Amilase/ lípase: se suspeita de pancreatite
● Enzimas hepáticas e bilirrubinas: se suspeita de hepatite
● Pesquisa de sangue nas fezes
● Gasometria venosa e eletrólitos: se houver perdas anormais ou desidratação, suspeita de cetoacidose diabética, estenose hipertrófica de piloro
● Hemocultura, urocultura e coprocultura, de acordo com o sítio suspeito de infecção
● Teste de gravidez


Exames radiológicos:
1. Radiografia simples em posição ortostática: presença de níveis hidroaéreos (obstrução intestinal); pneumoperitônio (perfuração do trato digestivo); impactação fecal (constipação intestinal). Radiografia de tórax em todo paciente que apresente febre ou outros sinais que possam estar associados ao diagnóstico de pneumonia (sintomas respiratórios recentes, taquipneia, exame abdominal inespecífico)
2. Ultrassonografia (US) de abdome é útil em suspeita de apendicite, intussuscepção e má rotação com volvo, torção gonadal, litíases, estenose hipertrófica de piloro.

O FAST (Sonografia Abdominal Focada para Trauma) pode detectar líquidos ou excluir grandes hemorragias em traumas abdominais.
3. Tomografia (TC) de abdome fica reservada para casos em que a avaliação clínica, exames iniciais e avaliação cirúrgica não foram elucidativos. Pode ser necessária no diagnóstico de pancreatite, nefrolitíase, apendicite em crianças menores ou obesas, abscessos ou massas abdominais.
● Cálculos de cálcio podem ser vistos na radiografia simples, cálculos de ácido úrico somente ao ultrassom, podendo demonstrar sinais de obstrução ao fluxo urinário, com hidronefrose, hidroureter; pode ser necessária complementação por TC sem contraste.
● Em todo caso traumático, o abdome deve ser avaliado por métodos de imagem, buscando identificar trauma de órgãos sólidos ou perfuração de vísceras ocas. A avaliação pode ser realizada somente com radiografias simples e ultrassonografias, em casos leves, ou tomografia computadorizada com contraste em casos mais graves.

 

Tabela 1 - Causas de dor abdominal de 0 a 5 anos 

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Tabela 2 - Causas de dor abdominal de 6 a 18 anos

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Principais etiologias discutidas

Doença dispéptica

A doença péptica é definida por doença ulcerosa e não-ulcerosa, causada por secreção cloridopéptica. Pode ocorrer no terço inferior do esôfago, estômago, duodeno proximal e no divertículo de Meckel. É uma doença comum em adultos e predominante no sexo masculino, porém desconhece-se sua real incidência em crianças. 

Classifica-se a úlcera péptica, de acordo com a localização, em gástrica, quando há redução dos fatores protetores (muco, bicarbonato ou prostaglandinas), e/ou duodenal, quando há aumento dos fatores agressivos (secreção ácida e pepsina). Outra maneira de classificar segue a provável etiologia: primária e secundária. A primária ocorre na ausência de doença sistêmica subjacente, é mais frequente no bulbo duodenal, em escolares e tem curso clínico crônico. A secundária está associada à doença aguda ou crônica, mais frequente no estômago e/ou duodeno, acometendo neonatos, lactentes e pré-escolares, com curso clínico mais agudo.

Geralmente a lesão é única, arredondada ou ovalada, com base composta por tecido de granulação, plana, regular e coberta por exsudato fibrinoide branco ou branco-acizentado. O aspecto endoscópico da úlcera depende do momento em que é observada, de acordo com o ciclo vital descrito por Sakita:

ativa - A, em cicatrização - H, e cicatrizada - S.

Sua etiopatogenia está associada a fatores genéticos, distúrbios fisiológicos ainda não bem estabelecidos e a fatores ambientais como tabagismo, uso de medicamentos e infecciosos. Nessa última categoria, destaca-se como importante fator causal a bactéria H. pylori. A evidência definitiva da sua participação como fator etiológico é de que o tratamento com antimicrobianos altera substancialmente a evolução da doença. S

O quadro clínico é variável de acordo com o tipo de úlcera e, principalmente, com a idade. Os sintomas mais comuns são: dor abdominal inespecífica (devido à dificuldade de caracterização nessa faixa etária), náuseas, vômitos e eructação.

A hemorragia digestiva alta (HDA) é a complicação mais comum da úlcera duodenal e a anemia aparece como consequência, raramente como sintoma da úlcera. A dor abdominal recorrente funcional, tão comum em pediatria, pode apresentar características semelhantes às da úlcera duodenal.

O diagnóstico de úlcera péptica pode ser feito por EDA, mesmo em crianças muito pequenas. Apesar do alto custo, a endoscopia permite estabelecer o diagnóstico, o local da úlcera e a obtenção de fragmento para estudo histopatológico e pesquisa de H. pylori. A infecção pelo H. pylori pode ser diagnosticada por meio de cultura e teste da urease durante a endoscopia. Nesse teste, um fragmento da biópsia é colocado em um meio ágar com ureia e a bactéria, se presente, é capaz de hidrolisar a ureia em amônia e dióxido de carbono. Além disso, o diagnóstico da infecção pode ser feito por histologia (estudo direto da bactéria em fragmento de biópsia), reação em cadeia da polimerase, sorologia, mais utilizada em estudos epidemiológicos, e teste respiratório com ureia marcada com carbono-13 para controle de erradicação após tratamento. No caso, foi utilizado o teste da urease e a pesquisa no fragmento histopatólogico, ambos com resultado positivo.

Apendicite

É a emergência cirúrgica mais comum na infância. A evolução pode ser lenta, com dias de dor leve, até quadros de progressão rápida, com 12 horas entre dor e perfuração (evolução muito menos comum).

Tem a história de uma dor abdominal difusa que vai se localizando em fossa ilíaca direita (FID), com sinais de peritonismo (descompressão brusca positiva, dor em FID quando percussão em outros pontos). Pode apresentar vômitos e diarreia ou constipação. O exame mais indicado para o diagnóstico é a ultrassonografia (USG), eficaz no diagnóstico em 50% dos casos – com a vantagem de ser mais barato, menos invasivo e sem exposição à radiação. Quando a suspeita existe e a USG não foi capaz de confirmar ou afastar o diagnóstico, a tomografia computadorizada (TC) com contraste está indicada. Hemograma e proteína C reativa (PCR) podem contribuir com a suspeita ou afastamento da hipótese; leucocitose com desvio à esquerda e PCR elevados, em conjunto, tem especificidade de 94%. O tratamento é a apendicectomia, mas até a cirurgia, deve-se manter antibiótico endovenoso de amplo espectro.

Erros de rotação e volvo

Apesar de menos comum, volvo de intestino delgado pode ser um caso muito grave, com tempo de algumas horas entre os primeiros sinais de obstrução e necrose de alças intestinais, e se acometer um território vascular extenso, como o da artéria mesentérica superior, pode ser uma ressecção extensa de alças.

Metade dos casos de volvo de intestino delgado ocorrem em pacientes com erro de rotação intestinal, e os outros casos estão associados à aderências, divertículo de Meckel ou idiopáticos.

Nos erros de rotação o ceco fica livre e pode dobrar e desdobrar sobre ele mesmo, causando sintomas de obstrução e dor intermitentes e autolimitados. A maioria desses pacientes terá sintomas e diagnóstico com menos de um ano de idade – já o volvo pode aparecer em qualquer idade.

Os sintomas do volvo são inespecíficos; vômito bilioso e não bilioso é o mais consistente; distensão abdominal pode existir, dor não está sempre presente no início. Alterações laboratoriais são inespecíficas (leucocitose, PCR elevado e hiponatremia). Na suspeição, radiografias contrastadas de TGI, seriadas, são o exame de escolha.

A USG também tem boa acurácia e sinais específicos para o diagnóstico, mas as radiografias seriadas ainda são mais consistentes. O tratamento é cirúrgico e urgente, mas até a cirurgia, jejum, antibiótico de amplo espectro, reposição volêmica, descompressão gástrica com sonda nasogástrica são algumas medidas importantes.

Intussuscepção

Ocorre quando há a invaginação de uma porção do intestino – e o mesentério – em outra porção do intestino. É a emergência abdominal cirúrgica mais comum entre 3 e 36 meses (geralmente uma invaginação ileocecal).

A tríade clássica envolve dor intensa intermitente, massa em forma de salsicha e fezes em geléia de framboesa. Porém, com o diagnóstico mais precoce, normalmente não vemos a tríade, e a queixa mais comum é a história de dor de muito forte intensidade com intervalos com pouca ou nenhuma dor e um paciente prostrado e, por vezes, com regular estado geral.

Em crianças de outras idades, é importante considerar outras doenças associadas, como divertículo de Meckel, pólipos, linfoma e duplicações, entre outros. Não é incomum haverem episódios de recorrência. O diagnóstico é feito principalmente com a USG, com o “sinal do alvo”. TC e Ressonância Magnética (RM) são ótimos exames mas raramente necessários.

O tratamento é a redução da invaginação, com uma variedade de técnicas não cirúrgicas, envolvendo enema e visualização (p.ex, enema com solução salina aquecida e USG). A taxa de sucesso com métodos não cirúrgicos é de aproximadamente 80%, considerando até 3 tentativas em pacientes que permanecem estáveis, com taxa de perfuração menor do que 1%. Se há suspeita de sofrimento ou necrose de alça, pode ser necessária cirurgia para correção.

Constipação

Das causas identificadas, é a mais frequente causa de dor abdominal aguda na pediatria. Não é uma emergência cirúrgica na grande maioria dos casos, mas por vezes a dor é de muito forte intensidade e sugere um quadro grave. Normalmente, é um quadro crônico, com uma agudização atual. Um momento onde a evacuação foi dolorosa leva a um comportamento retentivo – a criança evita evacuar porque dói – e isso leva a um ciclo vicioso de retenção, fezes maiores, mais dor, mais retenção.

O exame físico costuma não ter sinais de peritonismo e ter fezes palpáveis em fossa ilíaca esquerda ou região suprapúbica.

A USG não costuma ajudar nesses casos pela interposição gasosa, mas pode sinalizar que não há acometimento hepático, biliar, e sem sinais inflamatórios em região de apêndice, por exemplo. 

A radiografia de abdome em no mínimo duas posições não é necessária, mas pode ser útil para confirmar visualmente o diagnóstico para os familiares, já que muitas das vezes há uma contradição em tamanha dor ser causada “apenas” por constipação, ainda mais quando crônica.

O tratamento passa por desimpactção, com laxativos orais em altas doses, especialmente o polietilenoglicol – PEG – ou via retal, com enema de glicerina, por exemplo, mantendo terapia oral associada.

Colecistite, Colelitíase e Coledocolitíase

É raro na pediatria, mas vem sendo visto um aumento na frequência, que pode estar associado ao aumento de obesidade, especialmente nos estudos dos Estados Unidos. A apresentação é mais variada e inespecífica do que em adultos, podendo ser apenas dor inespecífica, constante.

Na suspeita de um quadro associado à vesícula biliar, deve-se incluir hemograma, PCR, exames de função hepática (não apenas enzimas), amilase e lipase, além de um exame de imagem.

Novamente, USG abdominal é o exame de escolha, eficaz para mais de 90% dos casos. Demais exames como colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), RM e outros, tem utilidade em casos específicos, mas não são os de primeira escolha no pronto atendimento.

O tratamento de litíase biliar varia de acordo com a idade, quadro clinico e patologias de base. Já a colecistite aguda, que se apresenta com quadro de dor mais intensa, vômitos associados, com febre e icterícia em até 30% dos casos e sinal de Murphy positivo, tem tratamento com hospitalização, jejum, soro de manutenção, analgesia e, na maioria dos quadro, antibióticos, com colecistectomia laparoscópica indicada quando criança estabilizada.

Pancreatite

Assim como as colicistites, a incidência de pancreatite parece estar em aumento. A etiologia é variada, incluindo doenças sistêmicas, biliares, medicações, trauma e infecção, sendo que um terço não tem etiologia conhecida. Diferentemente dos adultos, menos de 10% das pancreatites evoluirá com um quadro crônico na pediatria.

O diagnóstico, além da história clínica sugestiva (dor abdominal, por vezes em faixa com irradiação para o dorso, e vômitos), inclui amilase ou lipase 3 vezes maiores que o limite superior da normalidade e exame de imagem compatível com pancreatite. Na pediatria, a dor abdominal difusa não é um achado incomum, enquanto os pré-escolares e lactentes podem não ter dor, mas febre e distensão abdominal. Alguns sinais clássicos em adulto, como dor nas costas e equimose em flancos são raros.

A USG é o primeiro exame indicado, mas a TC consegue precisar melhor o quadro e suas complicações, como hemorragia, necrose e pseudocisto, por isso é comumente realizada ao longo do tratamento. Outros exames como colangiopacreato RM, USG endoscópica, CPRE pode ter seu uso ao longo do tratamento.

O tratamento consiste em:

  1. controle da dor e vômitos; hidratação adequada:. nutrição: não é mais indicado o jejum absoluto; pancreatites leve podem receber dieta hipogordurosa. Em casos mais graves, pode-se utilizar uma sonda nasogástrica ou nasoenteral nos primeiros dias para a nutrição. Antibióticos não são indicados de rotina, apenas se suspeita de infecção concomitante, como em perfurações.

Fontes

https://www.scielo.br/j/rpp/a/r6t8XPQPJBRtyCPCVsLQw7r/#:~:text=A%20dor%20abdominal%20aguda%20como,desconsideradas%20v%C3%A1rios%20outros%20diagn%C3%B3sticos%20diferenciais.

https://protocolos.hcrp.usp.br/exibe.php?id=1235

https://medicalsuite.einstein.br/pratica-medica/Pathways/Dor-Abdominal-Pediatrica.pdf

https://protocolos.hcrp.usp.br/exibe.php?id=1235

https://artmed.com.br/artigos/dor-abdominal-na-pediatria-diagnostico-diferencial