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Doença hepática esteatótica metabólica - manejo diagnóstico 

Conceitos iniciais

A doença hepática esteatótica metabólica (DHEM) é a doença mais comum do fígado, afetando 30% da população mundial. Compreende um espectro de manifestações hepáticas associadas a distúrbios metabólicos e cardiovasculares, como obesidade e/ou distribuição desfavorável de gordura, resistência à insulina, hipertensão arterial, dislipidemia e diabetes tipo 2 (DM2). A DHEM é reconhecida como a manifestação hepática da síndrome metabólica e a sua fisiopatologia atual está representadaA DHEM é caracterizada pelo aumento do conteúdo de gordura no fígado (ultrapassando 5% do parênquima hepático) e pode ser classificada como esteatose (quando há apenas excesso de gordura no fígado, com mínima inflamação) ou esteato-hepatite (quando há inflamação lobular e balonização de hepatócitos, com ou sem fibrose).

Pessoas com esteato-hepatite podem evoluir com diferentes graus de fibrose, progredir para cirrose (5%) e apresentar complicações como hipertensão portal ou carcinoma hepatocelular. Entre os que desenvolvem cirrose, o risco de hepatocarcinoma é estimado entre 5% e 30%, a depender de fatores demográficos e clínicos, como etiologia e estágio da doença hepática.

A associação entre DHEM e doença cardiovascular está bem estabelecida, constituindo a principal causa de morbimortalidade na população com DHEM. Considerando a fisiopatologia comum, os potenciais fatores etiológicos e alta taxa de eventos cardiovasculares nas pessoas com DHEM, um manejo abrangente do risco cardiometabólico se faz necessário nessa população, preferencialmente sob uma abordagem multidisciplinar.

 

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Figura 1. Figura ilustrativa dos graus de lesão hepática - desde o nível saudável até o cãncer hepatocelular

 

Nova nomenclatura e classificação

Os termos “doença gordurosa não alcoólica do fígado” (non-alcoholic fatty liver disease [NAFLD]) e “esteato-hepatite não alcoólica” (non-alcoholic steatohepatitis [NASH]) surgiram na década de 80, com a finalidade de descrever a histologia hepática de uma série de pacientes com esteato-hepatite avançada não associada ao consumo de álcool. A partir de então, esses acrônimos foram extrapolados para descrever o espectro da própria doença, o que acabou despertando algumas críticas. Primeiro, porque informavam mais sobre o que essa condição clínica não era (alcoólica) do que sobre a sua verdadeira natureza (metabólica). Segundo, porque muitos pacientes com esteatose predominantemente metabólica também ingeriam álcool, muitas vezes de forma errática.

Em um avanço no sentido de reconhecer a verdadeira etiopatogenia da esteatose hepática, um consenso internacional de experts propôs um novo sistema de classificação para essa doença. Além disso, o consenso sugeriu que o termo NAFLD fosse substituído por “doença gordurosa do fígado associada à disfunção metabólica” (metabolic [dysfunction]-associated fatty liver disease [MAFLD]).

Seguindo esta linha, em 2021, a Sociedade Brasileira de Diabetes pioneiramente utilizou o termo “doença hepática gordurosa metabólica” (DHGM) para descrever essa entidade em sua diretriz reconhecendo que, mais do que “associada a disfunções metabólicas”, a doença esteatótica do fígado é per se metabólica. Para isso, adotou os mesmos critérios previamente definidos para a MAFLD.

Assim, em 2023, um novo consenso proposto por diversas sociedades internacionais foi publicado, estabelecendo uma nova classificação e nomenclatura para a doença hepática esteatótica

 

Figura 2. Subclassificação da doença hepática esteatótica (DHE).

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Em resumo, o termo “doença hepática esteatótica” (DHE) passou a caracterizar as mais variadas etiologias da gordura no fígado, e o termo “esteato-hepatite” foi mantido. A presença da DHE associada a pelo menos um de cinco fatores de risco cardiometabólicos passou a ser denominada “doença hepática esteatótica metabólica” (DHEM, uma versão simplificada em português para “metabolic dysfunction-associated steatotic liver disease” [MASLD]), e o subgrupo desses pacientes que consomem quantidades significativas de álcool foi denominado “DHEM-DHA”. Essa subcategoria permite estabelecer uma distinção entre os indivíduos com a DHEM pura e a “DHA” (doença hepática alcoólica) pura. O acrônimo “EHM” caracteriza a DHEM acompanhada de esteato-hepatite, e a “DHE criptogênica” define a DHE em pessoas sem fatores de risco cardiometabólicos e sem uma etiologia conhecida para a doença hepática.

 

Rastreio e manejo

Há ampla heterogeneidade nos desfechos hepáticos e em suas formas de aferição entre os estudos que avaliam intervenções para melhorar a DHEM, incluindo parâmetros histológicos (esteatose, esteato-hepatite e fibrose), exames de imagem/não invasivos, testes bioquímicos e variáveis clínicas. 

 

Figura  3. Rastreio e manejo da DHEM em pessoas com pré-diabetes ou diabetes tipo 2.

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Testes laboratoriais para o diagnóstico diferencial da DHEM.

  • Anti-HBc IgG 
  • Anti-HBs
  • HBsAg
  • Anti-HCV
  • Ceruloplasmina
  • FAN
  • Ferritina
  • Saturação de transferrina
  • Anticorpo Anti-mitocôndria
  • Anticorpo Anti-músculo liso
  • Anti-LKM1
  • Alfa1 Anti-tripsina
  • Anticorpo Anti-transglutaminase tecidual IgA
  • IgA e IgG séricas

 

O rastreio para avaliação do risco de fibrose avançada é recomendado em todos os adultos com pré-diabetes ou DM2, uma vez que a DHEM é altamente prevalente nessa população. Outra diretriz também recomenda o rastreio de fibrose avançada em populações de alto risco, que incluem pessoas com pré-diabetes ou DM2, uma vez que ambas as condições são fatores de risco importantes para mau prognóstico em pacientes com DHEM.

Escores clinico-laboratoriais 

Escores clínico-laboratoriais, que incluem o FIB-4, o escore body mass index, aspartate aminotransferase/alanine aminotransferase ratio, diabetes (BARD), o aspartate aminotransferase-to-platelet ratio index (APRI) e o NAFLD fibrosis score (NFS) são úteis para a estratificação de risco de fibrose avançada (F3/F4). 

 

FIB-4

O rastreio para avaliação do risco de fibrose avançada associada à DHEM, inicialmente com escores laboratoriais clínicos como o Fibrosis-4 (FIB-4), É RECOMENDADO em todos os adultos com pré-diabetes ou diabetes tipo 2.

Em pessoas com pré-diabetes ou diabetes tipo 2 e FIB-4 ≥ 1,3 (sugerindo risco indeterminado ou alto de fibrose avançada), É RECOMENDADO a investigação adicional com elastografia transitória.

Dentre esses, o escore FIB-4 apresenta a melhor acurácia. Ele encontra-se disponível através do link: <https://www.hepatitisc.uw.edu/page/clinical-calculators/fib-4>.

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O FIB-4 é calculado a partir de dados clínicos e laboratoriais, que incluem idade, níveis de alanina aminotransferase (ALT), aspartato aminotrasferase (AST) e contagem de plaquetas. Com o ponto de corte de 1,3, o escore FIB-4 apresentou sensibilidade de 84,4% e especificidade de 68,5% para detecção de fibrose avançada. Porém, se o FIB-4 for < 1,3, descarta-se o risco de fibrose avançada, com um valor preditivo negativo (a probabilidade de que uma pessoa com um resultado de teste negativo esteja realmente livre de doença) de aproximadamente 91%. Pacientes classificados como de risco indeterminado ou alto de fibrose avançada devem ser acompanhados com outros métodos.

 

Elastografia hepática

A quantificação de fibrose e de esteatose pode ser realizada por elastografia hepática. A elastografia pode discriminar os seguintes estágios de fibrose: ausente ou leve (F0/F1), moderada (F2), avançada (F3) e cirrose (F4). Dentre as elastografias ultrassônicas, a elastografia hepática transitória (FibroScan®) constitui a tecnologia não invasiva mais validada atualmente. Porém, a  elastoressonância magnética ou elastografia por ressonância apresenta boa acurácia para quantificar gordura hepática e avaliar fibrose. No entanto, o alto custo e a baixa disponibilidade são limitações deste método.

Elastografia por FibroScan (Elastografia Transitória)

O FibroScan é uma técnica de elastografia que utiliza ondas ultrassonográficas de baixa frequência para medir a rigidez do fígado. Embora seja mais conhecida pela sua capacidade de avaliar a fibrose (cicatriz) hepática, as versões mais recentes dos aparelhos FibroScan também possuem a função CAP (Controlled Attenuation Parameter), que mede a quantidade de gordura no fígado.

Vantagens:

Não invasivo e indolor: É um exame rápido, semelhante a um ultrassom, que não exige cortes, agulhas ou anestesia.

Rápido: O procedimento leva poucos minutos.

Boa acurácia para esteatose e fibrose: O CAP é eficaz na quantificação da esteatose, e o FibroScan é muito bom para detectar fibrose avançada e cirrose.

Custo-benefício: Geralmente mais acessível financeiramente do que a RM.

Disponibilidade crescente: Está se tornando mais comum em clínicas e hospitais.

Monitoramento: Permite o acompanhamento da progressão da doença ou da resposta ao tratamento.

Desvantagens:

Limitações em obesos e pacientes com ascite: Pode haver dificuldade em obter medições precisas em pessoas com obesidade mórbida ou ascite (acúmulo de líquido no abdome).

Dependência do operador: Embora seja um método relativamente padronizado, a qualidade do exame pode ser influenciada pela experiência do profissional.

Avaliação segmentar: O FibroScan avalia uma área limitada do fígado, o que pode não representar a totalidade do órgão se a gordura não for distribuída uniformemente.

Não fornece imagens detalhadas: Diferente da RM, não gera imagens anatômicas detalhadas do fígado ou de outras estruturas.

 

Ressonância Magnética (RM) com Quantificação de Gordura (Dixon ou Espectroscopia)

A Ressonância Magnética é considerada o método mais preciso e completo para quantificar a gordura hepática, especialmente quando utiliza sequências específicas como a técnica Dixon ou a espectroscopia de prótons por ressonância magnética (MRS).

Vantagens:

Altíssima precisão e acurácia: É o padrão ouro não invasivo para quantificar a porcentagem de gordura no fígado, superando o ultrassom e a tomografia.

Avaliação global do fígado: Permite avaliar todo o órgão, mesmo em casos de distribuição heterogênea da gordura.

Não invasivo: Não utiliza radiação ionizante.

Identificação de outras condições: Além da esteatose, a RM pode identificar outras patologias hepáticas (como tumores, cistos, hemocromatose) e anomalias em órgãos vizinhos.

Desvantagens:

Custo elevado: Geralmente é o exame mais caro entre as opções.

Disponibilidade: Pode ser menos acessível em algumas regiões.

Tempo de exame: É mais demorado que o FibroScan.

Contraindicações: Pacientes com implantes metálicos (marca-passo, certos tipos de próteses, clipes cirúrgicos) ou claustrofobia podem não ser aptos a realizar o exame.

Preparação: Pode exigir jejum e, em alguns casos, uso de contraste.

 

Qual o "melhor" para esteatose hepática?

Para a quantificação precisa da gordura hepática (esteatose), a Ressonância Magnética (RM) com quantificação de gordura (Dixon ou MRS) é considerada superior e o padrão ouro não invasivo. Ela oferece a maior acurácia na determinação do percentual de gordura. No entanto, o FibroScan com CAP é uma excelente alternativa, especialmente para rastreamento, monitoramento e em casos em que a RM é muito cara ou indisponível. Ele é muito prático, rápido e tem uma boa sensibilidade para detectar e quantificar a esteatose, além de ser fundamental para a avaliação da fibrose associada.

A escolha ideal depende da situação clínica: Se o objetivo é quantificar com a maior precisão possível a porcentagem de gordura no fígado, especialmente em estudos de pesquisa ou para uma avaliação mais detalhada, a Ressonância Magnética é a melhor opção. Se o objetivo é um rastreamento inicial, monitoramento regular da esteatose e fibrose, ou em situações onde a RM é inviável, o FibroScan com CAP é uma ferramenta diagnóstica muito eficaz e prática.

Biópsia hepática

A biópsia hepática é o método padrão-ouro para avaliação da esteatose, identificação de EHM e quantificação de fibrose. Por ser um método invasivo, com limitações relacionadas ao custo, reprodutibilidade e risco de complicações, deve ser considerada somente em pacientes cuja avaliação por métodos não invasivos foi duvidosa, especialmente quando houver dúvidas sobre a etiologia da doença hepática.

Fontes

https://diretriz.diabetes.org.br/doenca-hepatica-esteatotica-metabolica-dhem/

https://www.med.club/artigos/doenca-hepatica-gordurosa-nao-alcoolica

https://capital.sp.gov.br/documents/d/saude/esteatose_hepatica-pdf